
“Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa;
uma impaciência da alma consigo mesma,
como uma criança inoportuna;
um desassossego sempre crescente e sempre igual.
Tudo me interessa e nada me prende.”
– Bernardo Soares (Fernando Pessoa), Livro do desassossego
Inspirado na VI Bienal de Psicanálise e Cultura, a ser promovida pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto em maio de 2023, o Conselho Editorial da revista Berggasse 19 propõe, em consonância com o evento, o tema “Humanidades possíveis”, sobre a condição humana e seus múltiplos vértices. Investigar o humano que nos habita – e nos habita? O humano que esteve em nós, estará em nós – e ainda está? Onde, como, com quem? São qualidades humanas intrínsecas à existência, dadas por si só, ou constituídas no encontro com o outro? É nosso convite à reflexão, à observação e, quem sabe, à escrita que promove o compartilhar. A Berggasse 19, veículo para tal compartilhar, estimula a apresentação de artigos que contribuam para o desenvolvimento do conhecimento psicanalítico desde a esfera intimista da sala de análise até a vivência dos indivíduos em sociedade, tecidas por interações na cultura.
Revisitando Freud em “O mal-estar na civilização” (1930/1996):
“Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo. Cabe agora esperar que a outra das duas ‘potências celestiais’, o eterno Eros, empreenda um esforço para afirmar-se na luta contra Tânatos, o adversário, igualmente imortal. Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace?”
Seguindo com ele no diálogo proposto em 1932 pela Liga das Nações, com Einstein, sobre o tema “Por que a guerra?” (Freud, 1933/1996), encontramos reflexões atemporais que continuam iluminando as inquietações da atualidade, intrínsecas ao contexto contemporâneo, e permanecem como um estímulo para pensar a condição inerente ao ser humano que conjuga destrutividade/criatividade, movimentos de vida e morte, dança de pulsões a partir da qual forjamos nossa sobrevivência numa aparente coexistência de contrários.
A psicanálise considera que a condição primitiva, originária do ser humano, que o faz emergir/submergir da e na natureza selvagem traz talvez um dos maiores desafios: tornar-se humano, transcendendo esse universo instintual e, ao mesmo tempo, considerando o Outro e sua existência. Da natureza selvagem instintual, sensorial, para o universo simbólico, segundo o pensamento de Bion (1967/1994), o homem se torna humano na relação com o Outro, nos vínculos que se formam, na busca de uma mente que possa acolher esses elementos mais primitivos e primordiais.
Lado a lado, inúmeros avanços tecnológicos projetam o humano para o futuro. Tecnologia e desenvolvimento que promovem e sustentam a vida humana em suas múltiplas dimensões, ou a materializam na concretude, na superfície de coisas? No movimento diante de tais possibilidades, continuamos cotidianamente convivendo com cenários de guerra, ameaças, entre outras agressões, expondo a vulnerabilidade própria do humano à crueza, à crueldade, também de forma universal e atemporal. Dimensões mentais habitadas pelo inumano presentes em interjogo com dimensões mais sofisticadas (Bion, 1977/1994).
O Conselho Editorial tem a honra de convidá-lo(a) a trazer contribuições para esse diálogo entre psicanálise e outras áreas. Sobre o “humano, demasiado humano”, vindo também da filosofia, para compor uma edição plural, em tempo de humanidades possíveis.
Aguardamos o envio de trabalhos até dia 1 de junho para o e-mail berggasse@sbprp.com.br. Para acessar as normas para publicação, acesse https://berggasse19.emnuvens.com.br ou clique aqui.
Conselho Editorial Berggasse 19
Referências
Bion, W. R. (1994). Estudos psicanalíticos revisados: second thoughts (3a ed.). Imago. (Trabalho original publicado em 1967)
Bion, W. R. (1981). Cesura (M. T. M. Godoy, Trad.). Revista Brasileira de Psicanálise, 15(2), 123-136. (Trabalho original publicado em 1977)
Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Vol. 21. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931) (J. Salomão, Trad., pp. 65-148). Imago. (Trabalho original publicado em 1930)
Freud, S. (1996). Por que a guerra?. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Vol. 21. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931) (J. Salomão, Trad., pp. 147-148). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)
Nietzsche, F. (2000). Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1878)
Deixe um comentário