É comum ouvir, entre analistas que atendem crianças, que o número de pacientes que chegam ao consultório tendo sido diagnosticadas como autistas vem crescendo.

O que os analistas pensam a respeito do autismo? O que evoluiu em nosso entendimento a respeito dessa temática nos últimos anos?

Conversei recentemente com a Dra. Izelinda Garcia de Barros, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), a respeito dessas e de várias outras questões relacionadas à infância. A Dra. Izelinda possui uma vasta experiência no trabalho clínico com crianças e é uma referência em nossa área.

Dra. Izelinda Garcia de Barros

A entrevista foi interessante e extensa; por isso, sua publicação em nosso Blog se dará em duas etapas. Nessa primeira, falaremos a respeito de sua formação e do surgimento do interesse pela psicanálise, assim como sobre o autismo e a proliferação de diagnósticos de déficit de atenção.

Sejam muito bem-vindos ao nosso bate-papo! Com vocês, a Dra. Izelinda.

LUIZ TOLEDO: Dra. Izelinda, como surgiu o seu interesse pela psicanálise?

DRA. IZELINDA GARCIA DE BARROS: Eu sou médica, formada pela Universidade de São Paulo. Sempre muito entusiasmada ao longo do curso, fui me interessando por várias matérias. Nas matérias básicas fiz um trabalho de pesquisa em fisiologia, mais tarde pensei em cirurgia plástica, fiz um estágio na clínica de queimados. Por fim, fui para a residência de clínica médica, mais abrangente, pois ainda não tinha decidido por uma especialidade.

No primeiro ano de residência fiz cursos no Instituto de Gastroenterologia dirigido por um titular da Faculdade de Medicina, Dr. José Fernandes Pontes, voltado para o estudo das doenças psicossomáticas do aparelho digestivo. Lá no Instituto do Pontes, assisti a duas ou três conferências de Noemi Rudolfer, uma psicanalista que apresentou uma visão geral sobre os “Três ensaios” (sobre a teoria da sexualidade, Freud, 1905), e descreveu as peculiaridades das fases de desenvolvimento… e fiquei muito interessada.

Logo em seguida fui trabalhar no Hospital do Servidor no setor de Gastroenterologia. Como recém-chegada, coube-me trabalhar no ambulatório de doenças psicossomáticas… meus colegas mais velhos preferiam atender outros distúrbios.

De fato, eram pacientes crônicos e queixosos. Aos poucos comecei a me interessar pela vida deles, a ligar seus sintomas com acontecimentos do seu cotidiano, investigar suas potencialidades e estimular a retomada ou mesmo o desenvolvimento de áreas saudáveis de suas personalidades; enfim, não ficar só girando interminavelmente sobre as consequências que essas doenças tinham em suas vidas. Desde criança aprendi que era útil e muito interessante ouvir e conversar com as pessoas, então passei a usar isso nos meus atendimentos: ouvir, conversar e respeitar meus pacientes em suas queixas.

Eu fui gostando desse caminho e os pacientes também. O resultado é que comecei a ter algum sucesso nas gastrites, nas otites, nas faringites; mas principalmente me alegrava vê-los mais vitalizados, voltando para a vida, por assim dizer – penso que havia uma melhora nos sintomas, eles não eram mais o centro de suas preocupações.

Atendi à mãe de um colega psiquiatra que depois de um tempo contou que ela tinha melhorado. Eu já sabia, era uma paciente que eu via toda semana.

Mais do que trazer notícias da sua mãe, ele contou que tinha mudado a direção do serviço de psiquiatria e me perguntou se eu queria trabalhar parte do meu tempo em um atendimento que conjugasse gastroenterologia e a psiquiatria.

O chefe clínico (Dr. Carol Sonnenreich) do serviço de psiquiatria era muito competente, ótima pessoa e excelente professor – e eu estava ávida por aprender. Assim fui caminhando, lendo, estudando e trabalhando com os pacientes psicossomáticos.

Então, o chefe do serviço resolveu montar um serviço de psicoterapia de grupo; eu fui designada para ser ouvinte em um desses grupos e, claro, fiquei desesperada, não sabia nada!

O primeiro livro que li foi de Bion sobre grupos, imagine! E não é que me ajudou?

Um pouco mais tarde fui trabalhar com o Dr. Di Loretto no seu consultório. Di Loretto, que muitos de vocês conheceram, foi outra presença luminosa na minha vida – outra pessoa ótima e excelente clínico. Assim fui beneficiada com uma dupla tutoria: Carol no Serviço de Psiquiatria e Di Loretto no consultório.

LUIZ: Um privilégio.

DRA. IZELINDA: Nem diga! Mas eu sabia que era um privilégio e valorizava isso. O Di Loretto era muito generoso, tínhamos uma pequena biblioteca, encontros no fim da tarde e reuniões semanais para discutir nossos casos. Sempre coordenados por ele.

Foi assim que eu soube da existência da Sociedade de Psicanálise. Eu não tinha ideia de que existia uma formação específica para psicanalistas; fui me informar a respeito na Sociedade de Psicanálise de São Paulo.

Nessa altura já tinha me casado, meu marido, também médico, já trabalhava há alguns anos em sua especialidade. Entusiasmado e também muito generoso, deu-me o suporte afetivo e econômico para que eu pudesse iniciar a minha formação.

Comecei assim minha nova caminhada com uma certa convicção de que finalmente encontrara meu lugar, um ponto de partida.

Como se percebe, as coisas foram acontecendo; cheguei à psicanálise sem muita programação.

Foi assim também, sem qualquer preparo prévio, que entrei em contato com o autismo, que iria ocupar tanto do meu interesse nas décadas seguintes.

LUIZ: E a Sra. comentou, no encontro que tivemos aqui na SBPRP, a respeito do tema ‘autismo’, que esse quadro tem se tornado mais comum nos últimos anos… eu queria ouvir sobre o que tem contribuído para que esse aumento se dê.

DRA. IZELINDA: Temos conversado muito sobre isso, faço parte de um grupo de estudos sobre autismo, hoje denominado transtornos do desenvolvimento, ainda que na prática continuemos usando a palavra autismo. Temos interesse nas interfaces com a sociologia, com a antropologia… Uma coisa importante foi que esse grupo ajudou a desvincular o autismo da ideia de mães incapazes, mães frias, de mães inafetivas elencadas por Kanner, um dos pioneiros do estudo sobre o autismo. De fato, as mães de crianças autistas com frequência parecem deprimidas, desvitalizadas, agarradas a conhecimentos complexos sobre o autismo, mas pouco sintonizadas com suas crianças.

Na prática clínica aprendemos a valorizar, como etiologia do autismo, a existência de uma tragédia na vinculação da dupla mãe-bebê. Sabemos que a função materna – a função psicológica – se desenvolve na vinculação com o bebê, e é recíproco. O bebê estimula os pais, ele solicita, seduz, atormenta, deixa a gente felicíssimo, preocupado. Mas o comportamento idiossincrásico da criança autista não contribui para construir uma mãe viva e ativa.

É tocante ver, em filmes caseiros, o desapontamento da mãe ou do pai com relação à falta de resposta do bebê, da criança.

Existem bebês que, desde o início, são crianças muito pouco responsivas. Hoje em dia se faz um atendimento bem precoce; em alguns lugares esse atendimento é parte do serviço nacional de saúde: observar a relação mãe/bebê e interferir naqueles casos em que há uma série de sinais, de sintomas, que sugerem que aquela dupla corre riscos e precisa de orientação. Na nossa Sociedade temos um serviço de atendimento precoce, chamado serviço “Zero a três”. Envolve pais e crianças, pais e bebês, pais e crianças pequenas. É um trabalho quase profilático.

Mas, voltando ao autismo, nosso grupo, que se reúne todos os meses há muitos anos, é um grupo vivo, de muita participação. Todos têm pacientes autistas; eu, a decana do grupo, depois de 35 anos deixei de atender crianças, mas meu interesse pelo assunto segue intacto. Guiomar Papa de Morais e Alessandra Teobaldo Stocche (colegas da SBPRP) se associaram a nós no ano passado.

Então, a impressão que se tem é que nesse momento cultural e social que vivemos (em que é o exterior que conta), são as modalidades de relações contratuais que importam. Se eu não sou visto, não existo. Há um grande desprestígio da intimidade, sem dúvida esse é um fator significativo para as relações iniciais mais frágeis entre mãe e bebê. Então, nas observações de bebês, é comum o observador contar da mãe vendo televisão ou digitando no celular enquanto está amamentando. As famílias têm poucas crianças. As meninas crescem, chegam a ter filhos sem nunca terem contato prévio com bebês, e têm uma idealização muito forte do que é um bebê. A ênfase fica na exterioridade: o quarto do bebê, o presentinho para quem vai visitar…

Por um lado, temos mulheres que fazem o parto em casa, por exemplo, o parto dentro da água, com uma Doula (profissional especializada em trabalhar com parturientes e bebês), mas não têm ideia do que seja um bebê, e não têm ideia desse período de vinculação entre a mãe e o bebê, que antigamente chamava o período do resguardo e era de quarenta dias. A mãe e o bebê ficavam protegidas, era uma coisa empírica. Haviam cuidados desnecessários, como não lavar a cabeça durante o resguardo, mas acredito que esse envolvimento, esse período de proteção da dupla mãe-bebê é primordial. Além do mais, as crianças logo são terceirizadas, por assim dizer. Compreendo que muitas mães não podem abrir mão de uma carreira, que custou anos para se estabelecer, para cuidar dos filhos, mas por outro lado não querem, com toda razão, abdicar da alegria, do prazer de ter um filho. As crianças vão muito cedo para os berçários, esse contato com uma única pessoa (seja mãe, babá ou avó) fica pulverizado, tem muita gente cuidando. Eu tenho impressão de que isso tem uma influência significativa.

É possível que estas novas configurações nas relações familiares tenham importância significativa no aumento do diagnóstico de autismo psicogênico, aquele em que não se identificam causas genéticas neurológicas ou metabólicas que poderiam ser invocadas como possíveis fatores etiogênicos da síndrome.

Há bebês menos ativos, outros mais excitados e, tanto uns como outros, precisam de um trabalho, de um tipo adequado de acolhimento. No ambiente restrito familiar, essa adequação ao estilo do bebê é intuitiva, natural – são poucas pessoas a lidar com ele – e sempre as mesmas – a mãe, o pai, uma avó, uma babá… quando há muitas pessoas envolvidas, isso se pulveriza.

Causas orgânicas também podem contribuir para uma configuração autística; cito como exemplo meu pequeno paciente de dois anos e meio portador de miopia gravíssima; até o estabelecimento desse diagnóstico, ele era tratado como se enxergasse perfeitamente, por isso viveu isolado, em um ambiente de névoa permeado por sons. Quando veio para análise, já usava óculos, nunca os tirava. Percebeu-se mais tarde que ele tinha o que se chama de ouvido perfeito para música, atividade na qual se desenvolveu. O autismo também pode estar associado a outras patologias, como: surdez, paralisia, hipotonia, condições que dificultam o estabelecimento de relações humanas significativas…

Como em quase todas as afecções que atingem a infância, o fator tempo é crucial no prognóstico do autismo. Quanto mais cedo se inicia o atendimento, mais possibilidades de retomada do desenvolvimento.

LUIZ: A Sra. também disse que considerava o diagnóstico de Déficit de Atenção um rótulo perigoso, cada vez mais usado para se referir a casos que poderiam ser descritos como, por exemplo, de ansiedade. O que a Sra. pensa dessa rotulação em larga escala?

DRA. IZELINDA: Há um grupo de crianças que me parecem padecer de uma espécie de desarmonia evolutiva. Elas têm um desenvolvimento cognitivo desenvolvido, mas são carentes de um sistema mental adequado para a elaboração de estímulos que recebem do meio ambiente e que derivam de suas vivências internas.

E, como as crianças pequenas e até os bebês têm sido cada vez mais estimuladoss nas suas habilidades cognitivas, o emocional não dá conta. Não temos em psicanálise o conceito de precocidade emocional saudável.

Creio que grande parte das crianças chamadas de hiperativas pode ser vítima desse descompasso entre a intensidade e frequência de estímulos e sua (in)capacidade de processá-los emocionalmente. Isto se exterioriza na ansiedade diária, nos distúrbios de alimentação, no sono, nas relações sociais e, frequentemente, na hiperatividade como forma de alívio de tensão.

(continua no próximo mês…)

Entrevista realizada por Dr. Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP, e transcrita por Kátia Maria Moreira.