No dia 09 de abril será realizado o Terças na Sociedade, dessa vez com o tema “O estranho insuportável: sobre o suicídio e outras mortes”. Ana Cláudia G. R. de Almeida, psicanalista membro associado da SBPRP, será a palestrante.
Não deixe de ler o comentário de Ana Cláudia abaixo e inscreva-se pelo site:
https://www.sbprp.org.br/site/eventos_show.php?id=66
O estranho insuportável: sobre o suicídio e outras mortes
por Ana Cláudia G. R. de Almeida, psicanalista membro associado da SBPRP
No romance “A Menina que roubava livros” de Markus Suzak, que deu origem ao filme de mesmo nome, a narradora logo no início nos alerta:
¨EIS UM PEQUENO FATO¨
Você vai morrer
(…)
¨REAÇÃO AO FATO SUPRACITADO¨
Isso preocupa você?
Insisto – não tenha medo
Sou tudo menos injusta
No caso, a narradora é a morte em pessoa (se é que podemos nos referir assim a ela) e nos apresenta a realidade já amplamente conhecida por todos, a morte não poupa ninguém, talvez seja a única instância onde cabem as palavras “sempre” e “todos” sem exceção. Isso mesmo, ninguém dela escapará.
Quem diante de tais afirmativas não sente um calafrio? Um frio na espinha, um susto? Tal como Freud nos descreve em seu clássico estudo, “O Estranho” que neste ano completa 100 anos e é tema do próximo Congresso da Febrapsi (Federação Brasileira de Psicanálise), a ser realizado em Belo Horizonte, em julho próximo. Em “O Estranho” Freud levanta e discute amplamente a condição daquilo que nos soa como mais assustador ser justamente aquilo que nos é mais intimamente conhecido e familiar, como a realidade da própria morte.
Sendo assim, todos enquanto vivos somos sobreviventes, não sucumbimos à realidade da morte, pelo menos, ainda não. De novo, como isto pode nos parecer natural e ao mesmo tempo surpreendente e assustador?
Ainda contando com nossa narradora do romance aqui considerado, a morte “em pessoa” encerra seu relato com as seguintes considerações:
¨UMA ÚLTIMA NOTA DE SUA NARRADORA¨
Os seres humanos me assombram
Aqui, nossa companheira de jornada reconhece e confessa como também se assusta com a espécie humana, pela sua capacidade de sobrevivência diante das vicissitudes do ser humano.
Como é possível ao ser humano sobreviver e lidar com a realidade da morte constantemente? Aqui recorro novamente a um clássico de Freud, o artigo “Luto e Melancolia”, para conversar e discutir sobre nossa realidade. Penso que nossa possibilidade de sobreviver à constante presença e realidade do risco de morte está na possibilidade de elaboração do luto pela nossa desejada e ao mesmo tempo inalcançável imortalidade. Sim, não somos imortais, mas ainda estamos vivos e isto faz toda a diferença para quem puder suportar a mortalidade humana. Porém, a impossibilidade do luto talvez nos encaminhe para a melancolia alucinada que pode tentar negar a própria condição humana mortal, através dos suicídios/homicídios.
Hanna Arendt a partir das sequelas das duas grandes guerras mundiais propôs a expressão “banalidade do mal”, Bauman nos propôs expressões como “Vida líquida” e “Amor líquido” para discutir a efemeridade das/nas relações atuais. Numa articulação das ideias destes dois pensadores do século XX, eu proponho o termo “Morte Líquida”, para tentar inserir o pensar em acontecimentos aparentemente impensáveis como temos visto em tantas tragédias atuais, de Suzano à Brumadinho, do Ninho do Urubu do Flamengo à Venezuela, Turquia, Nova Zelândia e tantas outras. Acredito estar acontecendo uma espécie de “grande mal-entendido” onde, pela impossibilidade de elaboração de luto, muitos e até mesmo jovens e crianças estão caindo na melancolia alucinada de acreditar que a morte também é efêmera e passageira, tal como nos jogos de vídeo game, ou como o poder e a riqueza exagerada podem fazer crer. Porém, a tragédia atual é justamente a de que, apesar de tantas efemeridades, a morte não é uma delas. Acredito que muitos estão morrendo, matando ou se matando, sem saber o que fazem, por não reconhecer claramente a diferença entre estar vivo e estar morto.
—
REFERÊNCIAS
Arendt, H. (1964/1999) Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras.
Bauman, Z. (2004) Amor Líquido – sobre as fragilidades dos laços humanos. (Carlos Alberto Medeiros Trad.). Rio de Janeiro.: Zahar.
Freud, S. (1917/1996) Luto e Melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XIV, p. 243-265). Rio de Janeiro: Imago. (trabalho original publicado em 1917).
Freud, S. (1919/1996) O Estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XVII, p. 237- 270). Rio de Janeiro: Imago. (trabalho original publicado em 1919).
Zusak, M. (2013) A Menina que Roubava Livros; (Vera Ribeiro, trad. 3ª edição) – Rio de Janeiro. Intrínseca, 2013
Deixe um comentário