A Bienal de Psicanálise e Cultura é o nosso instrumento de comunicação e de respostas ao nosso contexto social, político e humano como Sociedade de Psicanálise.

Estamos em pleno salto em direção à escuridão e incertezas do próximo momento e não podemos nos esquivar das nossas responsabilidades, como psicanalistas e como uma Sociedade de Psicanálise. Consideramos o termo responsabilidade, como capacidade de responder ao que nos atinge como cidadãos, trabalhadores da saúde, psicanalistas e membros de uma instituição com representatividade regional, nacional e internacional.

Como presidente e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto venho a público para manifestar nossa indignação e repulsa frente a esse cenário catastrófico e apocalíptico, na medida em que nos revela dimensões inimagináveis e inumanas que compõem a realidade do Brasil em que hoje vivemos.

Em toda trajetória da sociedade humana ainda não tínhamos experimentado tamanha turbulência e abalo em nossos alicerces que colocaram em xeque conceitos tão preciosos como o de humanidade e verdade, bem como os equívocos que produzimos em nome da “natureza mãe ao nosso dispor”.

Desde o final do século XVIII e em todas as épocas seguintes, esses conceitos sofreram profundas distorções e foram degradados a serviço de megalomaníacos populistas, fanáticos seguidores do deus Mercado e dogmáticos doutrinadores do culto capitalista. A diferença é que em nossa época atual, fomos atropelados pela geo-historia e pelas turbulências do antropoceno, conceito cientifico formulado pela antropologia, para dar conta das mudanças que a humanidade provocou no planeta Terra. Essas anunciam as alterações climáticas inexoráveis e o estabelecimento da “virosfera” com suas expressões pandêmicas, como uma dimensão ativa, poderosa e presente na noosfera terrestre.  A terra reage à presença do homem e às alterações que a era industrial e a busca insana de lucros promoveram.

A ideia do apocalipse também nos defronta com uma bifurcação crítica que tanto pode comportar aspectos destruidores que estão em curso, como fundamentalmente nos apresenta para o fim de um mundo e não do mundo. Uma transição da experiência de sermos humanos soberanos e manipuladores da natureza para a condição de terrestres compartilhando territórios com múltiplos entes e forças incoercíveis.

Segundo alguns estudiosos estamos frente a uma ruptura de proporções da descoberta de Galileu Galilei de que a terra se move, para uma nova perspectiva, a de que a terra se comove, segundo a teoria sobre Gaia de James Lovelock.

Todos nós, que cultivamos a vulnerabilidade, a dúvida e os confrontos com incertezas como instrumentos para sondar a escuridão do desconhecido, estamos conscientes das rápidas transformações e assombrados por mudanças catastróficas, que apontam para o colapso dos equipamentos de cuidados sociais e ambientais e a profunda ameaça à democracia através das falsas controvérsias que banalizam, adulteram e transformam fatos apontados pela ciência em disputas entre lobbys e poderosas corporações do mercado financeiro.

Hoje em nosso país, somos todos “órfãos do Real” – um termo cunhado por Grotstein, um pensador da psicanálise e estamos acuados diante de tantos desmoronamentos e capturados por barganhas com os pseudo-messias carismáticos e todos os psicopatas presentes nas galerias dos charlatães e dos adoradores do “pênis fecal”. Esse termo cunhado por Donald Meltzer apresenta as estratégias dos impotentes que confundem o bastão fecal com um pênis e que atuam como o grande orquestrador de cenários sadomasoquistas excitantes que tentam dourar detritos e apresentá-los como joias raras e evidencias da sua pseudo-potência. Estamos na fronteira de um universo fabricado com esboços grosseiros, estratégias bizarras e garranchos em forma de leis que rebaixam o debate publico e o bem estar social e tentam mimetizar e substituir vida real e viva por referencias de um capitalismo predatório, anticientífico e anti-vida.

É inegável a sensação de que atravessamos um ponto de mutação da espécie humana, com chances de um colapso infernal e também de construir relações que privilegiem o bem-estar de todos os seres sencientes da Terra.

Na prática como nos diz o antropólogo e filósofo Bruno Latour, somos todos contrarrevolucionários experimentando minimizar as consequências de uma revolução que foi feita sem nós, contra nós e, ao mesmo tempo por nós.

Precisamos despertar depressa, talvez ainda tenhamos chances de escolha!

Miguel Marques, Presidente da SBPRP