por Luiz C. Toledo

Dois homens (vamos chamá-los de Carlos e João) chegam ao banco para pedir um empréstimo, pretendem abrir uma empresa. Sentam-se com o gerente e Carlos preenche a papelada. A conversa é amena, ele é cliente antigo e tem histórico de bom pagador. João vai ao caixa eletrônico.

Então, antes de finalizar o processo, Carlos é surpreendido com uma pergunta inusitada.

Você e o João, seu sócio – perguntou o gerente – são mesmo parceiros de negócios ou vocês formam um casal?

Diante da pergunta, Carlos se sentiu ameaçado e constrangido, negando-se a responder. O gerente prosseguiu: vai sim, pois “quem vai aprovar a sua renda (para obter o empréstimo) sou eu”.

Na época, Carlos e o parceiro já formavam um casal há vários anos e tinham um filho. Constituíam uma família, mesmo que o Estado brasileiro não os reconhecesse.

Conversei com famílias, como a de Carlos e João, há uma década, colhendo relatos para escrever um trabalho sobre homoparentalidade.

Não havia, então, segurança jurídica ou amparo social para casais do mesmo sexo no país. Direitos básicos, como transmissão de herança, previdência e adoção dependiam da boa ou má vontade de cada juiz. Em suma, milhares de pessoas viviam uma situação precária e incerta porque os agentes do Estado fingiam (ou preferiam) não saber de sua existência. Mas essa situação estava prestes a mudar.

Alguns anos antes, em 2004, um milhão e oitocentas mil pessoas saíram às ruas na Parada Gay de São Paulo. O tema do evento foi “Temos família e orgulho”. A Parada paulista superou numericamente as de Nova Iorque e Toronto, já não dava mais para ignorar tanta gente.

Imagem: pixabay.com

O Supremo Tribunal Federal pronunciou-se favoravelmente sobre a união estável em 2011. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça reconheceu a união homoafetiva, obrigando os cartórios a celebrarem o casamento civil (Resolução no. 175). O assunto parecia encaminhado.

Então, na semana passada, o Senado abriu uma nova consulta pública sobre o tema. O Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família propôs sustar a Resolução no. 175. Se tiver sucesso, inviabilizará a realização de novos casamentos homoafetivos no país. Preocupada, a Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB recomendou que os LGBTs casem-se antes da posse do novo governo.

Em meio à polêmica, cabe perguntar: o quê, afinal, é uma família?

Na metade do século passado, Lévi-Strauss já sustentava que seria um erro reduzir as famílias ao modelo conjugal nuclear (pai, mãe e filhos). As famílias não se definem por serem configurações rígidas e imutáveis, suas bases se assentam em outros aspectos como: a aliança (o casamento), a filiação e a proibição do incesto, por exemplo. Para ele e para os estudiosos do tema[1], civilizações se desenvolveram, prosperaram e criaram vários tipos de arranjos familiares, inclusive no Brasil. Aos interessados, sugiro o clássico de Strauss: As estruturas elementares do parentesco (Editora Vozes).

Por que será, então, que o reconhecimento dessas famílias continua despertando tanto incômodo?

Uma hipótese: quando conteúdos intensamente reprimidos vem à tona, durante uma sessão, as resistências recrudescem. Assim, ao nos aproximamos de algo que desperta vergonha ou confusão em um paciente, por não haver capacidade para sentir ou pensar a respeito, sabemos que encontraremos barreiras. São momentos que podem inviabilizar uma análise ou, se tudo correr bem, levá-la a um novo patamar.

Algo semelhante se dá no âmbito coletivo. Se aquilo que foi negado e oprimido com violência por séculos, como (por exemplo) a homoparentalidade, torna-se visível e próximo, a reação não tarda. A ampliação das liberdades e direitos por parte de grupos tradicionalmente excluídos costuma ter, como contrapartida, o agravamento do medo, do ódio e das tentativas de repressão.

Visitei a página do Senado sem saber o que encontraria. Foi uma surpresa constatar que quase 94% das pessoas manifestaram-se contrárias à suspensão da Resolução no. 175. A julgar pelos números, o país evoluiu no que se refere ao respeito às diferenças, ou a parcela da população interessada no tema aprendeu a se fazer ouvir em alto e bom som. Ambas as possibilidades são bem vindas.

Se a intenção for, de fato, defender a família seria útil considerar que o conceito contemporâneo de família, em todas as ciências que se dedicam a estudá-la seriamente, é mais inclusivo e generoso do que aquele ao qual nos habituamos.

Nesse sentido, a família nuclear patriarcal talvez esteja mesmo se modificando e perdendo espaço para outros arranjos, e essa é uma transformação espontânea, como outras no passado.

Enfim e antes que eu me esqueça, apesar da truculência do gerente, o empréstimo do Carlos foi aprovado.

Ele e a família vão bem, obrigado.

[1] Sociólogos, psicólogos sociais, estatísticos, historiadores, etc.